Revista Quatro Cinco Um #14 São Paulo: agosto de 2018
https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/c/nos-quem
Crítica Literária
Nós, quem?
Noventa anos após sua publicação, o “Manifesto Antropófago” finalmente é submetido a um exame aprofundado de suas fontes e referências
Alexandre Nodari
01ago2018 04h51
Azevedo, Beatriz
Antropofagia: palimpsesto selvagem
PREF. Eduardo Viveiros de Castro
Editora Sesi-SP • 240 pp • R$ 59
Publicado há noventa anos e tendo servido de fonte para inúmeros movimentos culturais ao longo da segunda metade do século 20, o Manifesto Antropófago ainda desconhecia uma leitura detida, aforismo por aforismo, que fizesse jus à sua profundidade crítica, à multiplicidade das fontes que mobiliza, e ao processo de bricolagem pelo qual estas são articuladas por Oswald de Andrade, seu autor.
As poucas versões comentadas disponíveis, talvez devido ao formato e público-alvo, eram excessivamente lacunares e superficiais, limitando-se a elucidar certas referências do texto (e algumas vezes passando por cima das mais obscuras), no que, além do mais, nem sempre acertavam, como se pode ver pelos seus equívocos etnográficos e imprecisões nas informações fornecidas. Daí a importância e ousadia (bem inestimável no cenário artístico e intelectual) de Antropofagia: palimpsesto selvagem. Fruto de longa pesquisa de Beatriz Azevedo, o livro não se propõe a “‘esgotar’ os significados do Manifesto”, mas “ouvir a multiplicidade de vozes e pistas que ele engendra”, tomando-o (o título já indica) como um palimpsesto no qual se encontram rasurados, reescritos, reelaborados inúmeros textos e personagens (vozes), uns e outros tanto históricos quanto ficcionais, organizados de modo selvagem, à moda do selvagem (o que não quer dizer arbitrariamente). Trata-se, assim, não de uma leitura que se quer exaustiva, mas de um primeiro (embora larguíssimo) passo de uma tarefa que é necessariamente coletiva e aberta.
Pois, a bem da verdade, talvez só agora tenha chegado o momento da legibilidade do Manifesto, devido a uma confluência de fatores políticos, culturais e teóricos. Dentre os últimos, estão, como Silviano Santiago assinalou recentemente, as possibilidades abertas pelo influxo do chamado pós-estruturalismo para uma leitura renovada da Antropofagia que escape da camisa de força da busca ou afirmação de uma identidade nacional a que por tanto tempo foi relegada. Tendo Deleuze como uma de suas principais referências, o livro aponta como Oswald “não escorregou na proposta do ‘essencialismo’, que quer definir restritivamente o que é ‘ser brasileiro’, como se essa definição fosse possível — ou necessária”, como se (outra visão corrente e equivocada) a devoração constituísse uma assimilação do outro em nome da acumulação do próprio.
Em um mesmo movimento, a autora salienta tanto o elemento indigesto, que pode acompanhar todo ato de comer, quanto o significado de transformação e afirmação da diferença que a devoração possuía no ritual canibal ameríndio que inspirou Oswald, fazendo da própria Antropofagia um elemento de difícil digestão para a lógica da identidade e da acumulação.
Oswald positiva as faltas atribuídas aos índios, vendo nelas uma recusa político-existencial deliberada
Nesse ponto devemos apontar, além da virada de matriz filosófica, embora ligado a ela, uma virada de cunho antropológico, sintetizada na importância e interesse recente pelo pensamento de Viveiros de Castro (que assina o riquíssimo prefácio do livro), que adubou o terreno necessário para que a visão oswaldiana sobre o canibalismo tupi enquanto índice de uma ontologia (ou seja, de uma metafísica que ampara práticas sociais, políticas, econômicas etc.) fosse levada a sério.
Pois outro dos bloqueios que a autora tenta romper é o do suposto caráter meramente intuitivo, ou mesmo de mera provocação ou blague, das formulações de Oswald, mostrando o seu fundamento (as fontes, a perspectiva filosófica que as embasa etc.). A teoria antropológica recente aliada ao exame cuidadoso das fontes do Manifesto permite-lhe revelar como Oswald, num gesto que prenuncia Pierre Clastres, positiva as faltas e carências atribuídas aos ameríndios (“nunca tivemos gramáticas”, “nunca fomos catequizados”, “nunca soubemos o que era urbano”), vendo nelas uma recusa político-existencial deliberada (“contra todos os importadores de consciência enlatada”, “contra todas as catequeses”, “contra o homem vestido”) — positivação que, a autora demonstra, também se dá isomorficamente no plano formal, por meio, entre outros, do recurso constante à elipse. Beatriz Azevedo, assim, atende à invectiva proferida por Raul Bopp de “levar a sério esse estudo” realizado pelos antropófagos, levando a sério até mesmo (ou principalmente) o humor oswaldiano, buscando decifrar-lhe o sentido, o efeito buscado, a sua importância na estrutura textual.
Coisa de artista
Mas, como se isso não fosse pouco, é às antenas da artista, desses “sismógrafos sensibilíssimos dos desvios físicos da massa”, como definia Oswald, que devemos os maiores achados do livro. Como boa musicista, Beatriz Azevedo atende ao “mundo orecular” do Manifesto, lendo-lhe os “sinais”. Desse modo, ela descobre como o aforismo “Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará” é referência direta a um maxixe composto por Sebastião Cirino e Duque, num “procedimento de impregnação da cultura popular na literatura modernista”, que “agrega o importante elemento afro-brasileiro”, já presente em Pau Brasil.
Ademais, a proposta de ouvir o Manifestopossibilita-lhe elucidar não só seu conteúdo, mas também a sua forma (no que talvez seja a sua grande contribuição, se formos destacar uma), atentando para os “refrões”, “mantras”, a “arquitetura de ecos” que serve para “fundir a dimensão espaço-temporal”, criando o contexto do texto, o “matriarcado de Pindorama” e evocando a “vivacidade rítmica do índio”, em suma, para a “partitura textual” que se mostra, pelas lentes — ou ouvidos — perspicazes da autora, inclusive nos sinais gráficos, portadores de uma “função rítmica”. Por essa via, Beatriz vai trazendo à tona a forma como o texto arma e rearma, arranja e rearranja, uma cena enunciativa, o modo como ele manifesta o antropófago, e como tal canibal se manifesta por meio dele.
Nesse “grande palco em que se transforma o manifesto”, um “sujeito coletivo” (“a primeira pessoa do plural implícita no texto”) se dirige, como que em praça pública, a um “auditório virtual”, a outros, declarando uma guerra, nomeando inimigos — uma das funções dos manifestos no passado. Todavia, e essa é uma questão que sempre me intrigou: quem é esse “nós” que se manifesta por meio dele (e a quem se dirige)?
Evidentemente, como já vimos, não se trata do povo brasileiro, da substância hipostasiada da identidade nacional. Tampouco é o índio em voz própria, de corpo inteiro, pois Oswald, integrante consciente e culpado das “elites vegetais”, não seria pretensioso a esse ponto. É provável que uma resposta tão simples, de fronteiras tão demarcadas, não seja possível, pois — eis sugestão de Beatriz — a cena que a cenografia do Manifesto constrói é a do ritual antropofágico tupi, em que justamente as posições do próprio (“nós”) e do outro (“vocês”) se encavalgam: estaríamos, então, diante da encarnação “no corpo do texto” da “vivência da teatralidade do jogo entre o devorador e o devorado”.
A proposta de ouvir o Manifesto possibilita-lhe elucidar não só seu conteúdo, mas também a sua forma, atentando para sua ‘arquitetura de ecos’
Como se sabe, na cerimônia canibal, matador e vítima encenavam um diálogo feroz no qual era difícil definir quem mataria e quem seria morto, de quem a carne seria comida: o prisioneiro insistia que já havia devorado muitos dos parentes do algoz, e que seus próprios parentes o vingariam devorando a este. Nesse sentido, não poderíamos dizer que quem fala no Manifesto, o “nós” do texto, são os índios em nós, aqueles que devoramos pelo processo colonizador? Que quem nele se manifesta para nós são os índios latentes em nós, os outros em nós, nós-outros? E não poderíamos afirmar também que, como “vacina antropofágica” contra nós-mesmos, o que eles nos oferecem, pelo “corpo desmembrado da palavra” do Manifesto que se assemelha ao corpo “retalhado” do inimigo no banquete canibal, é o “gosto”, amargo e indigesto, da nossa “própria carne”? Essa, ao menos a meu ver, é a hipótese que podemos ouvir em Antropofagia: palimpsesto selvagem.